quarta-feira, 23 de julho de 2014

O BOTO ""COR DE ROSA"" NA VERDADE É VERMELHO

O boto "cor de rosa"

Por Manuel Dutra

Os últimos dias foram fartos de notícias sobre matança de botos no interior do Estado do Amazonas, prática, aliás, ainda resistente em vários pontos da região. Quem nasceu e se criou no interior da Amazônia nunca tinha ouvido falar em botos dessa cor até a década de 1980. “Boto cor-de-rosa realmente é uma invenção de estrangeiros. Via de regra, os ingleses e norte-americanos costumam inventar nomes vulgares para espécies de quaisquer continentes, sem nenhuma base no vernáculo popular", diz o pesquisador José de Sousa e Silva Júnior, do Museu Goeldi, de Belém, Pará.


Com frequência a televisão insere, em contextos diferenciados, às vezes de modo abusivo, cenas de pôr-do-sol, botos saltando num lago tranquilo, lagos rodeados de matas que se espelham nas águas serenas. E chega a criar novas realidades, como a existência de um boto cor-de-rosa, tal como verificado nos programas da conhecida série produzida por Jacques Cousteau, emitida pela Rede Globo, resultante da expedição do oceanógrafo e documentarista francês, entre 1982 e 1984. Antes das emissões desta série nunca se ouvira falar de botos de tal cor, na Amazônia.

A pedido do autor deste artigo, há algum tempo, o pesquisador José de Sousa e Silva Júnior, do Museu Paraense Emilio Goeldi, oferece a seguinte explicação: “Boto cor-de-rosa realmente é uma invenção de estrangeiros. Não posso garantir que tenha sido cunhado por Jacques Cousteau, apesar de ter sido ele o maior divulgador desse nome no Brasil. Via de regra, os ingleses e norte-americanos costumam inventar nomes vulgares para espécies de quaisquer continentes, sem nenhuma base no vernáculo popular. Com o tempo esses nomes acabam sendo traduzidos para as línguas locais, por pessoas desavisadas, e muitos acabam sendo incorporados como se fossem legítimos. Boto cor-de-rosa é um desses casos, e se refere à espécie Inia geoffrensis, conhecida na Amazônia como boto vermelho”.

A Amazônia, com a sua profusão de cores, é um ambiente sabidamente propício para a fantasia, e uma fantasia que carrega consigo fortes heranças coloniais. "Cientistas" e "viajantes" inventaram muitas coisas, a começar do nome Amazônia, nascido da mega-fantasia das mulheres guerreiras de Tupinambarana.

É a eterna recepção ao que "vem de fora", mais ou menos como tanto se falou há pouco do caráter de vira-lata, sempre apto a internalizar observações externas. Doença sócio-cultural que, se não curada, criará inevitável impedimento ao crescimento dos amazônidas e dos brasileiros como povo, dado que a incorporação automática do olhar estrangeiro leva fatalmente à impossibilidade de se desenvolver a auto-estima, sem a qual nenhum povo pode reconstruir-se.

Cores em profusão misturadas discursivamente a uma “sinfonia da floresta”. Na TV há momentos em que paisagens amazônicas parecem “saltar aos olhos”, mais ou menos como relata o repórter Danilo, no programa “Amazônia – História”, da TV Globo: “Parecia que eu estava enxergando tudo mais colorido. O verde pulava no olho da gente. A impressão que dava é que antes eu só via preto e branco, tal o colorido das coisas. E tudo isso ... com aquela sinfonia da floresta no ouvido...”. Danilo dá a impressão de falar menos na qualidade de sujeito observador das cores do real não midiatizado e mais como elemento integrante do processo de fabricação das cores no laboratório midiático. Pelo que diz, seus olhos parecem ver o mundo através da moldura da tecnologia.

No Sairé
A invenção televisiva cria realidades não midiáticas: um boto cor-de-rosa é, hoje, um dos elementos-chaves da festa folcórica do Sairé, que se realiza anualmente no balneário de Alter-do-Chão, no Pará.

A manipulação da cor comporta uma estratégia cujo apelo é nitidamente emocional. Tratando do aspecto psicológico da cor, Tiski-Franckowiak (1997, p. 131) afirma que “a primeira sensação da cor, antes de sua interpretação intelectual, acontece no sistema límbico, estritamente relacionada com a vida vegetativa e emocional”. Assim, diz a autora, na observação psicológica do indivíduo, quando este se depara com as cores no campo perceptivo, ele é “quase obrigado a olhar mais para as [cores] primárias do que para qualquer outra” (idem, p. 135). É exatamente isso que a televisão deseja e se esforça ao máximo para que aconteça: que o espectador sinta-se obrigado a ver mais, a não se desconectar do programa.

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