Pesadelo de menina
É preciso dizer a garotas que sofrem abuso, como Xuxa, que a culpa não é delas, é de homens obscenos.
Debora Diniz
Xuxa
em Sonho de Menina foi
um filme para crianças. A personagem vivida pela rainha dos baixinhos era uma
professora de matemática que sonhava em ser atriz. Sem grandes expectativas de
roteiro, o filme combinou fantasia com relances biográficos de Xuxa, uma mulher
também a meio caminho entre a realidade e a ficção. Ao contar o que viu na
vida, Xuxa apresentou-se como personagem de um roteiro documental. Xuxa em Pesadelo de Menina poderia ser o título de seu depoimento
solitário à televisão. A melancólica trilha musical só foi interrompida quando
a personagem cedeu o lugar à mulher em aflição pela memória do passado. Xuxa
enfrentou a câmera e surpreendeu a audiência ao anunciar "Eu fui
abusada". Até os 13 anos, Xuxa foi vítima de abuso sexual de homens de seu
convívio doméstico - amigos, professores e parentes. Esse foi um segredo
não previsto pelo roteiro do sonho, mas sentido pela ferida do real.
A
história da rainha se transformou em um roteiro de conto de fadas, interrompido
nos últimos minutos de depoimento pelo segredo da violência. Uma adolescente
suburbana e bonita é descoberta em um trem; em poucos meses, é uma imagem
pública. Ainda jovem, casou-se com o rei do futebol, namorou o príncipe da
velocidade, transformou-se na rainha dos baixinhos. Como em um enredo de
matrimônio arranjado entre famílias samurais, porém adaptado à realidade das
celebridades sem fronteiras, o agente doomiai entre
Michael Jackson e Xuxa foi o assessor do imperador da terra do nunca. Não houve
casamento da rainha com o imperador, apesar do amor em comum pelos bichos e
pelas crianças. Xuxa se apresentou ambiguamente como uma mulher independente,
porém solitária. "Por que não consigo me casar? Deve ter uma
explicação". A resposta, segundo ela, seria a ferida do abuso sexual
sofrido na infância.
A casa é um espaço de risco para as
meninas. Elas são vítimas do desejo obsceno dos homens, sejam eles pais, amigos
ou vizinhos. As meninas emudecem-se diante do assédio - temem os
agressores pela força com que eles as ameaçam, sentem vergonha de suas mães,
imaginam-se culpadas pelo sexo que carregam entre as pernas infantis. As mães
são figuras que compõem um binômio com essas meninas - poucas são as
capazes de reagir ou denunciar o agressor. Com suas filhas, elas são parte de
uma arquitetura perversa da violência: temem os agressores pela sedução ou pela
força. Xuxa não contou à mãe ou aos irmãos a violência que sofria, algo comum
às meninas muito jovens assediadas por adultos. Certamente há histórias de mães
que se lançam contra os agressores, mulheres que ignoram a hegemonia patriarcal
que as une às filhas como corpos disponíveis ao desejo masculino. Mas essas são
histórias de exceção, seja porque o segredo das meninas é impenetrável, seja
porque as mulheres também se submetem à ordem de silêncio dos agressores.
A escola e o hospital são dois
espaços que provocam a hegemonia do medo e do silêncio. Por sinais muito
diversos, professoras, psicólogas e assistentes sociais são as principais vozes
de denúncia contra a violência e o abuso infantis. Na escola, a menina se
transforma. A metamorfose imposta pela violência denuncia-se por comportamentos
padronizados ao olhar atento das professoras - desde expressões afetivas
como a tristeza até indicadores objetivos da desordem mental, como a queda no
rendimento escolar. No hospital, a menina se demonstra. A metamorfose está no
corpo e não só nos afetos perturbados. Menarca, gravidez e abuso são
descobertos como sequências de um ato perverso que se estende no tempo: meninas
pré-púberes são violadas e seus corpos em gestação escancaram um longo regime
de violência silenciado pela casa. É a gravidez que aponta a violência e
denuncia que o agressor não é um estrangeiro, mas um patriarca do regime
doméstico de poder.
O segredo de Xuxa escapou aos olhares
atentos das professoras, e o abuso que sofria talvez não tenha se consumado em
ato sexual, o que evitou o risco da gravidez infantil. Xuxa não foi ouvida em
seu silêncio por nenhuma das instituições capazes de protegê-la; ela foi uma
sobrevivente do abuso sexual infantil. Hoje, causa política e biografia se
confundem em uma mulher madura, rica e independente que escolhe a câmera como
interlocutora do que só se imaginaria como possível na esfera do fantástico dos
contos de fada. Mas não é. Xuxa é uma rainha de carne e osso, diferente da
bailarina da música infantil. Como as outras meninas, ela teve unha encardida
ou escarlatina. Mas, diferente de outras meninas, Xuxa foi abusada sexualmente.
Há outras meninas que, como ela, se perguntam "por que aconteceu isso? Eu
ainda acho que foi minha culpa". Elas se sentem únicas no segredo e na
vergonha.
É preciso dizer a elas que "não,
a culpa não foi sua, menina". Não há culpa em carregar um sexo entre as
pernas. Não há vergonha em ser uma menina desprotegida. Na verdade, não existe
razão para temer ser uma menina. Há homens obscenos, fortalecidos por uma
cultura patriarcal que ignora a decência e dignidade das meninas. Há homens que
não temem a lei penal, seguros que estão de sua supremacia na casa e sobre as
mulheres de seu domínio. Nem Xuxa nem as meninas anônimas são responsáveis pelo
abuso. Nem Xuxa nem as mães das meninas anônimas são capazes, sozinhas, de
enfrentar a força patriarcal. Entre sonho e pesadelo, a voz de Xuxa deve ser
poderosa para romper o silêncio masculino da casa. Quem fala é a rainha dos
baixinhos, uma mulher que nunca reconheceu limites para entrar na casa dos
homens.
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