quarta-feira, 31 de março de 2010

ÉTICA DE MODO GERAL

Quanto à terminologia: falaremos da moral ou da ética. Pois podemos usar aqui as duas palavras mais ou menos como sinônimas, a não ser quando quisermos enfatizar mais o lado da reflexão pessoal consciente, então diremos moral, ou o lado dos costumes concretos, das tradições das formas de agir de um povo ou de uma civilização, e então falaremos da ética, acompanhando nisto, mais do que a tradição de nossos irmãos castelhanos, a alemã (com Kant e Hegel e a interpretação que este último deu de Sócrates e da eticidade grega). A palavra ética fica também reservada, ao nível epistemológico, para a disciplina de reflexão filosófica, enquanto se usa em geral a palavra moral para os questionamentos teológicos. Neste sentido, ninguém estranhe se ouvir dizer, por exemplo, que a ética é o estudo da moral.

No campo da reflexão sobre o agir humano, destacam-se hoje em dia três grandes tradições filosóficas.

A primeira reporta-se geralmente aos escritos de Aristóteles, o grande mestre grego que viveu há uns 2.300 anos, e que situou a sua “ciência das virtudes” entre a Física e a Política. A rigor, as ciências filosóficas da práxis deveriam ser três: a Ética, centrada no agir individual, a Economia, que deveria estar voltada para a práxis doméstica ou familiar, e a Política, idealizando as relações humanas dentro do universo da cidade/estado e das cidades entre si (pois ela já foi escrita no período do Império Alexandrino). O que caracteriza a ética aristotélica e dos seus seguidores, é que ela estuda o agir a partir de uma concepção do homem como sendo: um animal político, que tem linguagem e muitas vezes age logicamente (ou deveria fazê-lo) e que precisa desenvolver-se dentro de uma sociedade concreta, num período de tempo, dentro de formas concretas de governo de uma cidade, se quiser ser feliz. O ideal de Aristóteles então é o do homem virtuoso, significando a virtude uma força, um vigor, uma excelência relacionada aos valores práticos e intelectuais da existência. O mais virtuoso seria o mais capaz de realizar-se como homem, atingindo assim a felicidade (eudaimonía), meta procurada por todos. Esta felicidade supõe um certo equilíbrio de bens, pois o homem, ser complexo, não busca simplesmente um único bem. Precisa de ar para respirar, de comida e de bebida, de saúde para sentir-se bem, de algum dinheiro, de alguns amigos, de algum reconhecimento público e respeito por parte da sociedade ou do estado, e precisa até ter algum tempo para poder dedicar-se às reflexões filosóficas, metafísicas, bem como precisa assistir a algumas representações teatrais, para, participando das tragédias, crescer moralmente. Como estamos vendo, o comportamento ético, estudado pela filosofia da práxis dos aristotélicos, inclui não somente as reflexões especificamente “morais”, mas supõe também uma certa sabedoria ou prudência para o trato com o mundo. Outra característica da ética aristotélica é uma certa noção de natureza humana. Há coisas que nossa reflexão mostra ajudarem à natureza, outras vemos que lhe são nocivas. Parece-me que esta tradição filosófica, hoje mais uma vez em grande voga, influi decisivamente dentro e fora das igrejas, para o debate com os cientistas. Ou seja, o argumento, às vezes demasiado apressado, é sempre: isto ou aquilo vai contra a natureza humana. Mas poderíamos levantar a pergunta: onde está estabelecida de maneira definitiva esta natureza, este modo de ser próprio do homem? Será que toda ela poderia realmente ser deduzida através de silogismos a partir da definição inicial do “animal rationale”, definição, aliás, que Heidegger considera pouco proveitosa?

De qualquer maneira, para a problemática da Aids, esta concepção não serve apenas para refletir sobre a necessidade da saúde corporal e dos comportamentos mais ou menos “naturais”, mas poderia ser muito inspiradora no que tange à sua teoria das virtudes. Pois mesmo a teoria da virtude como um “justo meio” (tantas vezes incompreendida), tem muito a nos ensinar ao enfrentarmos uma ameaça até recentemente desconhecida. Vejamos apenas o exemplo da coragem, (para nem falarmos da virtude da justiça): coragem, para Aristóteles, é um justo meio termo, adequado ao homem, entre a temeridade e a covardia. Ora, se a coragem é uma virtude desejável, então temos de questionar muitos comporta-mentos covardes, comuns em nossa sociedade atual, que busca geralmente apenas o conforto, a facilidade, a segurança, o prazer e a saúde a qualquer preço. Enquanto a tradição histórica de ordens e famílias religiosas, não somente cristãs, favorecia o heroísmo do atendimento aos mais sofredores, mesmo arriscando a saúde e a própria vida, pois não há maior amor do que dar a própria vida pelos seus irmãos, e uma vez que o Senhor dirá um dia: “a mim o fizestes”, nossos costumes atuais secularizados propendem muitas vezes apenas para o hedonismo, e privilegiam demais o medo, coisa que Aristóteles, um pagão, não deixaria de abominar.

A segunda grande tradição ética, de estilo mais anglo-saxônico, é a corrente do utilitarismo. Os seguidores deste modo de pensar são geralmente muito pragmáticos, de certo modo imediatistas (contentando-se com uma moral provisória), são menos especulativos, e raciocinam praticamente assim: o maior valor ético deve consistir em procurar o maior bem possível para o maior número possível de homens (ou, como preferiria dizer Peter Singer, em sua Ética Prática, “de pessoas”). Esta formulação é útil e prática, e pode ser usada muitas vezes. Ela tem a vantagem de não perder tempo em especulações que aca-bam atrapalhando, ou mesmo substituindo, o agir. E não há dúvidas de que no campo da moral ou da ética as palavras jamais conseguem substituir as ações. Lembremos apenas dois exemplos: no Evangelho, a parábola dos dois filhos, quando um diz “não”, mas se arrepende e faz a vontade do pai, e o outro diz “sim” e não faz, talvez até achando que já fez o suficiente ao prometer que o faria. O mesmo acontece, partindo agora para a literatura, com as filhas do Rei Lear, em Shakespeare: duas delas juram amor ao pai, mas, como insinua Kent, suas “words of love” não são seguidas por “works of love”. Entretanto, também se poderia objetar que o utilitarismo move-se um pouco no ar, na medida em que não define o que seria este bem. O que se deve conseguir para o maior número possível de pessoas: mais livros ou mais manteiga? E o próprio Aristóteles, muito antes de nosso tempo, já poderia lembrar-lhes de que o útil é sempre um valor relativo, ele não é bom em si, mas bom para uma outra coisa, e portanto esta outra coisa é que merece realmente todos os nossos esforços. Mas sobre o que seria o bem final para os homens, esta corrente geralmente não pensa muito.

A terceira grande tradição filosófica que atua e vigora até hoje é a da linha kantiana, centrada sobre a noção de dever. Parte das idéias da vontade e do dever, conclui então pela liberdade do homem, cujo conceito não pode ser definido cientificamente, mas que tem de ser postulado sempre, sob pena de o homem se rebaixar a um simples ser da natureza. Kant também reflete, é claro, sobre a felicidade e sobre a virtude, mas sempre em função do conceito de dever. É famosa, na obra de Kant, sua formulação do chamado “imperativo categórico”, nas palavras: “Age de tal modo que a máxima da tua vontade pos-sa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”. - Kant reconhece que esta é apenas uma fórmula, porém ele, que gostava tanto das ciências e que não tinha a intenção de criar uma nova moral, estava apenas preocupado em fornecer-nos uma forma segura de agir. Sua ética é, pois, formal, - alguns até dirão formalista. Ora, o nosso pensador alemão, com seu imperativo categórico, nos forneceu, na prática, um critério para o agir moral. Se queres agir moralmente, (isto é, para Kant, racionalmente,) - o que aliás tu tens de fazer - age então de uma maneira realmente universalizável. Pois aqui está o segredo da ética kantiana: A universalização das nossas máximas (em si subjetivas) é o critério. A moral kantiana, de certo modo, também pressupõe um conceito de homem, como um ser racional que não é simplesmente racional. Portanto, um ser livre, mas ao mesmo tempo atrapalhado por inclinações sensíveis, que ocasionam que o agir bom se apresente a ele como uma obrigação, como uma certa coação, que a sua parte racional terá de exercer sobre sua parte sensível. O dever obriga, força-nos a fazer o que talvez não quiséssemos ou que pelo menos não nos agradaria, porque o homem não é perfeito, e sim dual. Mas o dever, quando nos força, obriga a fazer aquilo que favorece a liberdade do homem, porque o homem é um ser autônomo, isto é, sua liberdade, no sentido positivo, consiste em poder realizar o que ele vê que é o melhor, o mais racional. Poder realizar significa: causar por vontade própria um efeito no mundo, ao lado das causas naturais que pertencem, como diz Kant, (à maneira newtoniana,) ao mecanismo da natureza. O homem, neste sentido, é legislador e membro de uma sociedade ética: é legislador porque é ele que vê o que deve ser feito, e é membro ou súdito porque obedece aos deveres que a sua própria razão lhe formula. Neste sentido, ele não tem um preço, mas uma dignidade, e é por isso que a segunda fórmula do imperativo categórico diz para agirmos de modo a não tratar jamais a humanidade, em nós ou nos outros, tão-somente como um meio, mas sempre pelo menos também como um fim em si. É o que Tugendhat chamaria uma ética do respeito à pessoa.

Não quero e nem posso, aqui, entrar em mais detalhes sobre essas três correntes éticas, mas gostaria de ressaltar que a terceira, a kantiana, é extremamente moderna. A ética do dever é moderna porque confia no homem, na sua razão e na sua liberdade. É a ética do homem empreendedor, e nisto coincide com o surgimento e a ascensão da sociedade industrial e capitalista. Ela é estranha ao capitalismo consumista, na medida em que não dá grande valor ao gozo dos prazeres, acentuando privilegiadamente os deveres. A felicidade de que Kant fala é a da consciência do dever cumprido. A tranqüilidade da boa consciência. E se ele fala na busca dos bens materiais é porque considera que ser feliz, neste aspecto, é um dever do homem, uma vez que um homem frustrado faz mal a si e aos outros. Temos, pois, até uma obrigação de tudo fazermos para ser felizes, desde que seja tudo o que poderia ser universalizável, dentro do respeito aos demais. Não é a felicidade a qualquer preço.

O ponto comum destas três concepções éticas é que elas se situam numa posição intermediária entre, por um lado, as morais religiosas ou tradicionais, que poderíamos chamar dogmáticas, isto é, que contém explicitamente preceitos revelados, quer por uma divindade transcendente, quer pela força da tradição histórica, e, por outro lado, as atitudes que poderíamos chamar infra-éticas. Atitudes infra-éticas apresentam, por exemplo, aquelas pessoas que não vivem, ao menos conscientemente, ao nível ético da escolha do “bom”, do “bem”, do “agir bem” ou do “bem comum”. São pessoas que buscam simplesmente o prazer, ou o poder, ou o proveito pessoal, ou as vantagens econômico-financeiras, em todas as ocasiões. Também poderíamos chamar de atitude infra-ética, embora não de “amoral” aquele comportamento motivado apenas por sentimentos, supostamente bons. O sentimento moral ou o “moral sense” não constitui uma base filosoficamente respeitada como suficiente. O mesmo vale para os que defendem valores puramente tradicionais enquanto convencionais. Bem próximo destes estão os hoje chamados “contratualistas”, que embora teorizem sobre formas de convivência humana possível sobre a terra, não se baseiam propriamente numa perspectiva moral. As ações supostamente contratuais podem ser também interpretadas perfeitamente como estratégicas. Uma aliança de famílias mafiosas, dividindo o crime e a contravenção entre si, não atinge um nível moral porque não respeita todos os envolvidos, mas tão-somente os diretamente interessados nos negócios: a clientela não é respeitada em sua dignidade pessoal. Estamos supondo portanto que a ética, porquanto moral fundamentada por uma reflexão (seja ela mais espontânea ou mais sistematizada), sempre tem um respaldo argumentativo, procura mostrar-se racional, e sempre busca a universalização, quer dos interesses, quer de uma natureza comum, quer de um agir segundo máximas que possam constituir-se em leis universais. A busca da argumentação fundamentadora é extremamente importante numa situação de pluralismo de valores e de globalização da sociedade. Os interesses do grupo, do clã ou da família ou corporação não podem mais dizer a última palavra, assim como a moral de uma confissão religiosa não pode ser imposta aos que não compartilham desta.

Exposto este panorama, ainda que resumido, das teorias éticas mais contem-porâneas, deveríamos agora ao menos iniciar uma reflexão que ligasse os fundamentos teóricos com alguns dos aspectos do problema hoje vivenciado ao redor da Aids. Os desafios da Aids, que apareceram em nossa fenomenologia de dez pontos, têm de ser especificados na perspectiva mais especializada da Bioética e dos Códigos de Ética. Porém não podemos deixar de tentar ao menos uma primeira ligação entre estes fatos e aquelas formulações de tipo normativo.

Numa perspectiva néo-aristotélica, teríamos que expressar a luta pela vida e pela felicidade, da parte do doente e dos seus familiares e amigos, bem como a necessidade do exercício das virtudes tais como a prudência, a temperança, a coragem, a justiça e outras, pois sem virtude o homem não está em condições de enfrentar os lados mais trágicos da existência, que nossa ideologia dominante procura até esconder. Os valores do discernimento e da amizade também se mostram como urgentes. A tendência aristotélica que privilegia a lógica que o homem tem ou pode ter insistiria em que nossos comportamentos não podem ser totalmente dominados pelas paixões e inclinações. O homem precisa de autodomínio, até para evitar a doença. Por outro lado, o cientista ou o médico deve aprender de Aristóteles que sua ciência é também uma “virtude”, ou seja, por ser um bom cientista ele já é também virtuoso, uma vez que a ciência, mais do que uma entidade mítica adorada pela mídia, é antes “uma propriedade de seu caráter”, faz parte de seu éthos. Aristóteles, tratando do amor e da amizade, ainda enfatizaria que tais relações consistem em querer o bem do outro, valorizando nele o que ele tem de melhor. As éticas de formato aristotélico tendem, por outro lado, a atitudes conservadoras, abominando qualquer comportamento que se desvie de um certo ideal de “natureza humana”, supostamente pré-estabelecido e definitivo. Esta posição, já por ter em suas bases conceitos metafísicos muito antigos, de tipo essencialista, pertencentes a um mundo completamente diferente do mundo científico-tecnológico em que vivemos, precisa esforçar-se muito para conseguir dizer coisas realmente importantes diante de um problema completamente novo, contemporâneo, como o da epidemia da Aids. Em todo caso, não se deve desprezar as origens aristotélicas desta ética, fundada afinal de contas por um pensador cujo conceito-chave era o da “vida”, conceito presente desde as investigações sobre plantas e animais até as sobre a teoria da tragédia.

Os pensadores de extração utilitarista não se preocupam com questões sobre natureza humana, embora respeitem os direitos das pessoas. Buscam a felicidade maior possível, entendida em grande parte como ausência de dor e de sofrimento. Alguns desses pensadores são mais sensíveis a problemas como o do prolongamento desnecessário do sofrimento, na hipótese de que o paciente já não suportasse mais o tipo de existência que está tendo. O que não significa, naturalmente, deixar de lutar enquanto a vida apresenta ainda um sentido forte e humano. Um utilitarista também se lembraria de questionar se algumas formas de relacionamento humano englobadas no título geral do amor são realmente benevolentes, e se não deveriam ser modificadas quando prejudiciais. Por outro lado, o esclarecimento sobre a doença e sobre a forma de contraí-la não deveria preocupar-se demasiado com tabus e um suposto pudor, levando-se em conta um cálculo de valores maiores, e numa perspectiva sempre voltada para os resultados concretos e previsíveis, mais do que para as formalidades das intenções.

Quanto aos éticos do dever, da liberdade e da universalização, sua tendência é sempre de privilegiar a intenção, e não apenas o resultado. De procurar tratar sempre os demais com respeito, como a seres livres e autônomos, que agem livremente e que são capazes de fundamentar suas formas de agir, inclusive pela universalização. Rejeitam, naturalmente, a discriminação por causa de uma doença, pois para eles todos os seres racionais são igualmente dignos. Insistiriam quanto à sinceridade e à transparência das informações, uma vez que o sentido da linguagem é o de revelar e não o de ocultar e, como herdeiros da Aufklärung, defenderiam com o maior empenho o esclarecimento, também a orientação sexual. Valorizariam extremamente os esforços dos pesquisadores, porque esta ética é a outra face da razão pesquisadora e porque o cientista tem de aprimorar os seus talentos. E insistiriam na necessidade de auxiliar os que se encontram em uma situação pior, pois é impossível querer que se proíba uma ajuda possível. Mas teriam grande desconfiança em relação à eutanásia, devido ao respeito à vida, à natureza e à dignidade da pessoa.

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