quinta-feira, 3 de setembro de 2015

REALIDADE AMAZÔNICA

Povos “sem história”, entre a exuberância e a pequenez
Por Manuel Dutra 

É inaceitável que a Amazônia continue como prostíbulo à disposição de quem chega para farrear, bem recebidos pelos cafetões locais. E quem já viveu o suficiente sabe perfeitamente qual o futuro de todo lupanar. Ou ele é arrancado agora ou será essa a herança para as futuras gerações, como nós outros o herdamos de cafetões do passado.
 Fotos: MDutra
Passarela rústica ligando barracos no Rio Matapi, próximo ao Porto de Santana, Amapá
 Anos atrás, passando de barco pelo município de Breves, no Arquipélago do Marajó, observei aquela já conhecida situação de miséria que empurra milhares de mulheres e crianças a pedirem esmolas aos passageiros das embarcações que por ali passam ou atracam. Do trapiche da cidade pude perceber três sinais que petrificam a Amazônia no tempo: na rua da frente, próximo ao rio, um restaurante mostrava uma grande placa com a inscrição “Pizza delivery”, denotando a conexão simbólica entre o fundo do mundo com as reluzentes ofertas do mundo globalizado.
A pequenez, o desprezo pelo homem amazônico, entre a
exuberância da natureza e a pobreza

Do outro lado do rio, não muito largo para as dimensões amazônicas, duas grandes serrarias, numa das quais encontrava-se um transatlântico inglês com bandeira panamenha embarcando toneladas de madeira serrada. Entre as serrarias, o navio e a Pizza delivery, centenas de minúsculas canoas com mulheres levando crianças ao colo ou já na primeira fase da adolescência, com as mãos estendidas, pedindo comida, roupas e o que mais fosse aos passageiros, alguns dos quais jogavam pacotes em direção às canoas, muitas delas sob risco visível de naufragar.
Bem próximo, portos se atualizam para exportar grãos e minérios

Aquela visão me fez lembrar “os povos sem história” de que fala Eric Wolf em seu livro “Europa e la gente sin história”, publicado em 1994. Me fez lembrar também nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador que, no meado do século 17, referiu-se aos habitantes locais, batizados de índios, como povos que não tinham história porque não tinham a escrita, não se sabendo quem eram nem de onde tinham vindo. Era a hipocrisia à quintessência de quem acabava de chegar. Os portugueses, os adventícios, classificaram os povos que aqui estavam há milênios antes dos europeus como gente que não se sabia de onde tinha vindo. Diz Frei Vicente que apenas se observava que eram gente de cor baça e os homens não tinham barba.

Porto de Minério
Deixando o século 17 de Frei Vicente, percebemos que no século 21 talvez o que tenha se transformado sejam tão somente as formas linguageiras de classificação de realidades que persistem, inclusive as “realidades inventadas” de que fala Wolf. É o que se pode deduzir da paisagem visível ao longo do Rio Matapi, no Estado do Amapá, entre os municípios de Santana e Mazagão. Nas proximidades do porto de Santana se vê, de um lado, o capital apressado em modernizar e adaptar o antigo ancoradouro ali existente, por onde saíram bilhões de toneladas de manganês para ao Estados Unidos, deixando como produto local a imensa massa empobrecida e os enormes buracos existentes na Serra do Navio.

A partir de agora, tecnologicamente atualizado, o porto de Santana servirá e já está servindo para a exportação volumosa de soja e milho produzidos no Brasil Central, massa enorme de grãos que está também saindo pelos portos de Barcarena, Santarém e Itaituba. Ao lado, outro porto para o escoamento mineral se constrói.
Porto de embarque de soja e milho para outros países

Assim, no Rio Matapi verifica-se a pequenez humana, espremida tanto pela exuberância natural da Amazônia como pela crescente presença do capital nacional e estrangeiro, com a disseminação de empresas de extração mineral, hidrelétricas, estradas, portos como o do Lago Maicá, dentro da cidade de Santarém. Empresas ou meros aventureiros dos tempos atuais, com o incentivo e apoio de autoridades locais/regionais, pouco se importam com aquilo que se passou a chamar e transformar em lei, isto é, o respeito à natureza e aos povos que vivem/sobrevivem dentro dessa natureza, como os povos indígenas, os ribeirinhos em geral e os agricultores familiares que vão sendo empurrados para as favelas das cidades mais próximas, a fim de que a soja torne-se intocável, da mesma forma como o dendê é o senhor que tudo determina no Nordeste e Sudeste paraense, fazendo diminuir brutalmente as áreas dos roçados de mandioca, o que elevou os preços da farinha como nunca. Ao mesmo tempo em que espalham a lamúria segundo a qual a farinha ficou muito mais cara na região devido “à preguiça” dos trabalhadores que recebem o Bolsa Família.
O adolescente do interior da Amazônia brinca na lama.
Favela não urbana?

Realidade inventada

Andar pelo interior da Amazônia é um convite a muitas formas de reflexão. Nestes dias, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, o IPEA, publicou pesquisa referente ao período 2000-2010, quando o Brasil diminuiu sensivelmente o índice de vulnerabilidade social, o IVS. Esses resultados me fazem lembrar o que me disse a pesquisadora Maria José de Araújo Lima, do Instituto de Ecologia Humana de Recife, em entrevista que fiz para O Liberal no início dos anos 1990. 

Naquele momento, ela mostrou-se preocupada com os rumos que a Amazônia estava tomando, ao afirmar que, pelo que indicavam as evidências de então, a Amazônia ainda poderia se tornar uma região mais pobre do que o Nordeste. A clarividência da professora Maria José está agora nos resultados da pesquisa de IPEA, segundo a qual, as cidades amazônicas estão bem mais pobres do que a maioria dos núcleos nordestinos. É a região que apresentou, nos 10 anos estudados, o mais baixo índice de evolução da qualidade de vida urbana. Se a pesquisa for ao imenso interior, pouco haveria a destacar das condições dos velhos tempos dos seringais, tal como nos conta Ferreira de Castro que, adolescente, foi mandado para o fundo dos seringais do Acre, logo após chegar de Portugal a Belém. Seu romance foi publicado em 1930, sob o título A Selva. 
Gente sem história ou realidade inventada para
justificar a dominação?

Nesse mundão de águas e florestas, vale a noção de “povos sem história” apontados por Wolf (1994, p. 464), para quem, a partir do século XV, a dispersão dos europeus, através dos oceanos, conjuntou as “redes regionais pré-existentes” em uma orquestração global e as submeteu a um ritmo de alcance mundial. Dessa forma, povos com origens e modos de ser diversos “foram arrastados por essas forças para atividades convergentes, ... levados a participar na construção de um mundo comum”, pelo encontro de marinheiros mercantes europeus e soldados de várias nacionalidades, mas também “povos naturais” da América, África e Ásia.

Afirma o autor que “nesse processo”, as sociedades e culturas de todos esses povos experimentaram transformações profundas, transformações que afetaram tanto os povos considerados como portadores de história ‘real’ como também as populações que os antropólogos chamaram de ‘primitivas’ e que, em geral, foram estudadas como sobreviventes prístinos de um passado intemporal (idem, p. 465).

Para Wolf, a história desses povos “primitivos” também está constituída pelos processos mundiais que a expansão europeia pôs em marcha, não sendo, pois “antecessores contemporâneos”, nem “povos sem história, nem povos cujas histórias, usando a expressão de Lévy-Strauss, permanecem congelados” no tempo (p. 465). No processo de expansão europeia, diz Wolf (idem, p. 469), o controle da comunicação permite aos administradores estabelecer as categorias por meio das quais se vai perceber a realidade. E, de modo inverso, esse mesmo processo carrega em si a faculdade de negar a existência de categorias outras, de remetê-las ao reino da desordem e do caos, de torná-las social e simbolicamente invisíveis. Além disso, esse processo de conjuntar povos portadores de história “real” e aqueles “sem história” esforça-se por manter em seu lugar os significados assim gerados, isto é, de que os “primitivos” não têm mesmo história “real”. Esses significados, assim produzidos, constituem “proposições básicas sobre a natureza da realidade inventada” (idem, p. 469).

Embora subsista uma “realidade inventada” no sentido de petrificar as noções de submissão “natural” dos povos dominados, há a realidade afinal visualizada. No interior do Pará, por exemplo, assim como nas chamadas periferias de suas cidades, de Belém, Santarém, Marabá, Ananindeua, Castanhal, Juruti e todas as demais 136 sedes municipais, a pobreza e a desordem social são a regra. Situação que se aprofunda e contra a qual muito pouco se tem feito, a não ser quando testemunhamos grupos de trabalhadores sem terra e grupos indígenas dando o exemplo aos “brancos” urbanos ou interioranos, de que é inaceitável que a Amazônia continue como prostíbulo à disposição de quem chega para farrear, bem recebidos pelos cafetões locais. E quem já viveu o suficiente sabe perfeitamente qual o futuro de todo lupanar. Ou ele é arrancado agora ou será essa a herança para as futuras gerações, como nós outros o herdamos dos cafetões do passado.

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