segunda-feira, 15 de agosto de 2011

SAUDADE NÃO TEM IDADE

Entre mangueiras, memórias de além-mar
Domingo, 14/08/2011 (diário do Pará)

Há 61 anos, Celina Coelho troucou Portugal pelo calor da Amazônia

Fotos dos netos e filhos nas estantes, toalhas de crochê e bandeirinhas de Portugal decoram a mobília modesta e várias imagens de Nossa Senhora de Fátima se espalham pelos cantos da residência. O cenário é a casa de dona Celina, portuguesa de 80 anos, onde fomos recebidos para uma conversa numa manhã calorenta de quinta-feira.
Ela esperava na porta de entrada, em uma cadeira de balanço, lendo o jornal, rodeada por um jardim florido e bem cuidado. Ao entrarmos, fomos recebidos com um abraço entusiasmado, típico das avós, acompanhado de um puxão de orelha. “Pensava que vocês nem viriam mais, já estava a esperar bastante”, reclamou dona Celina, após meia hora de atraso da equipe.

Desculpas pedidas e aceitas, ela nos convida a entrar, escolhe uma cadeira próxima à janela ventilada para então compartilhar conosco sua história. Dona Celina, como muitas mulheres, mudou sua vida por causa do casamento. Ela morava em Panela da Beira, região serrana de Portugal, quando casou e veio morar em Belém com o marido, também português.

“Ele era de lá, mas sempre vinha por aqui. Dizia que se não se casasse comigo não casaria com ninguém. Mas eu costumo falar que não me casei, me casaram. Eu era tão nova que nem pensava em casamento, nem na vida, em nada. Mas ele queria casar, queria casar. Eu tinha 19 anos, foi preciso me darem autorização para casar. Ele falava que sempre voltaríamos a Portugal. Mas tu sabes quanto tempo fiquei sem ver minha mãe? 25 anos, minha filha”, lamentou a portuguesa.

DESCOBERTA

Ela chegou a Belém no dia 22 de abril, no Dia do Descobrimento do Brasil, com uma filha de colo de 3 meses. “Vim embora de navio. Naquele tempo era uma viagem difícil, demorou 22 dias para chegar aqui e lá se vão 61 anos de moradia em Belém, que é a idade da minha filha mais velha, a Célia”, relembrou.
A portuguesa sempre morou na mesma casa desde que se mudou para Belém. A residência passou por algumas reformas até ficar a casa de muro verde alto, localizada na travessa Antônio Baena.

Sem dificuldades de adaptação na cidade, ela dividia o tempo entre cuidar dos filhos e trabalhar no bar da família. “Tínhamos um comércio aqui na esquina da Curuzu. Quando meu marido morreu, ainda trabalhei lá por quatro anos até formar todos os meus filhos. Meu marido sempre dizia que não queria deixar propriedade nem nada para eles, queria deixá-los educados, já que naquele tempo se dava muito valor ao ‘canudo’. Mas hoje, se tem canudo na mão e não tem emprego”, comentou.
Naquela época, a vida em Belém era agitada e segura, ela lembra, saudosa. “Eu me levantava de manhã, fazia o café às 5h e levava sozinha o bule na mão para o bar da família, onde eu trabalhava. Chegava lá, abria a porta e era tudo seguro. A gente não tinha medo de assalto essas coisas, nunca tive um assalto. Todo mundo me respeitava lá. Passei quatro anos sozinha. A polícia era lá perto e nunca nos aconteceu nada. Agora nem podemos sair de casa que é muito arriscado”.
Antes de Belém, a juventude em Portugal Filha de Antônio e Cecília, Celina trabalhava consertando roupas na sua cidade natal.“Meu pai era carpinteiro, fazia construções, minha mãe era dona de casa, fazia muito crochê. Eu aprendi com ela e quando vim para Belém fazia a roupa dos filhos enquanto pude. Minha vida lá era simples. Trabalhava numa alfaiataria. Eram dois alfaiates e as calças dos ternos quem fazia era eu, todas as calças passavam pela minha mão. Minha vida era só trabalho. Nunca gostei assim de muitas festas, Eu só vim saber o que era cinema quando estive na cidade. Passamos uns três dias lá na cidade antes de embarcar. Na minha cidade não tinha esse negócio de cinema e até hoje ainda não tem”, comentou.
Ao contrário do calorzão da Amazônia, Panela da Beira tinha baixas temperaturas, lembra Celina.“Nevava lá. Neve para mim não é novidade, mas quando nevava lá, vou te contar, não era fácil, era muito frio, muito ruim”, relembra.

A portuguesa é a irmã do meio de dois irmãos.“Eles continuam morando lá e são viúvos também. Tenho o retrato do mais novo, querem ver?”. Ela levanta e busca a fotografia emoldurada no armário da sala. A foto mostra o pai em uma foto 3x4 e o irmão e uma imagem maior.

Com as fotografias na mão, ela complementa: “Meu pai e meu irmão eram muito parecidos”. Ela continua olhando o retrato e diz: “Meu pai e minha mãe eram o casal mais unido que tinha na minha terra. Depois de idosos eles só viviam de mãos dadas por onde andassem. O nome dela era Cecília - eu também tenho uma filha chamada Cecília - e ele só chamava para ela de Cilinha, ‘minha Cilinha’. Eram muito amigos, muito mesmo”.

"Sou mais paraense do que portuguesa"

Como a maioria dos que visitam o Estado, a portuguesa se apaixonou pela terra dos papas- chibé. “Fui bem acolhida aqui. Sou mais paraense que portuguesa. O Pará é a terra dos meus filhos, é a minha terra. Não quero mais voltar para Portugal. Gosto de tudo aqui”, contou a dona de casa aos risos. Mas a relação com Portugal é mantida com objetos que enfeitam a casa, lembranças, e o sotaque que continua bem marcado. “Engraçado que minha cunhada veio comigo e passou tempos ‘a cá’ e ninguém dizia que ela era portuguesa. E eu não, não sei por quê. Se eu falar no telefone me perguntam :’a senhora é portuguesa?’ Eu digo: ‘sou, nasci lá, mas sou mais brasileira que portuguesa’. Agora veja, nem se pode fazer um trote que todos sabem que sou eu”, brinca.

“Tenho música de Portugal”. Ela levanta e coloca o CD. “Escuto sempre esse CD, me dá uma saudade assim” - ela pausa, enquanto as lembranças levam-lhe às lágrimas. A entrevista chega ao fim com um convite para conhecer a casa cheia de plantas, pássaros e cachorros. “Minha neta disse para eu vestir uma roupa bem bonita para dar a entrevista. Vocês acham que está boa?”, perguntou Dona Celina que usava um vestido azul marinho e joias quando nos levou ao portão e se despediu com mais um caloroso abraço de avó portuguesa.

Reportagem: Sâmia Maffra

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