Povos “sem história”, entre a exuberância e a pequenez
Por Manuel Dutra
É inaceitável que a Amazônia continue como prostíbulo à disposição de
quem chega para farrear, bem recebidos pelos cafetões locais. E quem já viveu o
suficiente sabe perfeitamente qual o futuro de todo lupanar. Ou ele é arrancado
agora ou será essa a herança para as futuras gerações, como nós outros o
herdamos de cafetões do passado.
Fotos: MDutra
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Passarela rústica ligando barracos no Rio Matapi,
próximo ao Porto de Santana, Amapá
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Anos atrás, passando de barco pelo município de Breves, no
Arquipélago do Marajó, observei aquela já conhecida situação de miséria que
empurra milhares de mulheres e crianças a pedirem esmolas aos passageiros das
embarcações que por ali passam ou atracam. Do trapiche da cidade pude perceber
três sinais que petrificam a Amazônia no tempo: na rua da frente, próximo ao
rio, um restaurante mostrava uma grande placa com a inscrição “Pizza delivery”,
denotando a conexão simbólica entre o fundo do mundo com as reluzentes ofertas
do mundo globalizado.
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A
pequenez, o desprezo pelo homem amazônico, entre a
exuberância da natureza e a pobreza |
Do outro lado do rio, não muito largo para as dimensões amazônicas, duas
grandes serrarias, numa das quais encontrava-se um transatlântico inglês com
bandeira panamenha embarcando toneladas de madeira serrada. Entre as serrarias,
o navio e a Pizza delivery, centenas de minúsculas canoas com mulheres levando
crianças ao colo ou já na primeira fase da adolescência, com as mãos
estendidas, pedindo comida, roupas e o que mais fosse aos passageiros, alguns
dos quais jogavam pacotes em direção às canoas, muitas delas sob risco visível
de naufragar.
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Bem
próximo, portos se atualizam para exportar grãos e minérios
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Aquela visão me fez lembrar “os povos sem história” de que fala Eric
Wolf em seu livro “Europa e la gente sin história”, publicado em 1994. Me fez
lembrar também nosso primeiro historiador, Frei Vicente do Salvador que, no
meado do século 17, referiu-se aos habitantes locais, batizados de índios, como
povos que não tinham história porque não tinham a escrita, não se sabendo quem
eram nem de onde tinham vindo. Era a hipocrisia à quintessência de quem acabava
de chegar. Os portugueses, os adventícios, classificaram os povos que aqui
estavam há milênios antes dos europeus como gente que não se sabia de onde
tinha vindo. Diz Frei Vicente que apenas se observava que eram gente de cor
baça e os homens não tinham barba.
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Porto
de Minério
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Deixando o século 17 de Frei Vicente, percebemos que no século 21 talvez
o que tenha se transformado sejam tão somente as formas linguageiras de
classificação de realidades que persistem, inclusive as “realidades inventadas”
de que fala Wolf. É o que se pode deduzir da paisagem visível ao longo do Rio
Matapi, no Estado do Amapá, entre os municípios de Santana e Mazagão. Nas
proximidades do porto de Santana se vê, de um lado, o capital apressado em
modernizar e adaptar o antigo ancoradouro ali existente, por onde saíram
bilhões de toneladas de manganês para ao Estados Unidos, deixando como produto
local a imensa massa empobrecida e os enormes buracos existentes na Serra do
Navio.
A partir de agora, tecnologicamente atualizado, o porto de Santana
servirá e já está servindo para a exportação volumosa de soja e milho
produzidos no Brasil Central, massa enorme de grãos que está também saindo
pelos portos de Barcarena, Santarém e Itaituba. Ao lado, outro porto para o
escoamento mineral se constrói.
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Porto
de embarque de soja e milho para outros países
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Assim, no Rio Matapi verifica-se a pequenez humana, espremida tanto pela
exuberância natural da Amazônia como pela crescente presença do capital
nacional e estrangeiro, com a disseminação de empresas de extração mineral,
hidrelétricas, estradas, portos como o do Lago Maicá, dentro da cidade de
Santarém. Empresas ou meros aventureiros dos tempos atuais, com o incentivo e
apoio de autoridades locais/regionais, pouco se importam com aquilo que se
passou a chamar e transformar em lei, isto é, o respeito à natureza e aos povos
que vivem/sobrevivem dentro dessa natureza, como os povos indígenas, os
ribeirinhos em geral e os agricultores familiares que vão sendo empurrados para
as favelas das cidades mais próximas, a fim de que a soja torne-se intocável,
da mesma forma como o dendê é o senhor que tudo determina no Nordeste e Sudeste
paraense, fazendo diminuir brutalmente as áreas dos roçados de mandioca, o que
elevou os preços da farinha como nunca. Ao mesmo tempo em que espalham a
lamúria segundo a qual a farinha ficou muito mais cara na região devido “à
preguiça” dos trabalhadores que recebem o Bolsa Família.
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O
adolescente do interior da Amazônia brinca na lama.
Favela não urbana? |
Realidade inventada
Andar pelo interior da Amazônia é um convite a muitas formas de
reflexão. Nestes dias, por exemplo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada,
o IPEA, publicou pesquisa referente ao período 2000-2010, quando o Brasil
diminuiu sensivelmente o índice de vulnerabilidade social, o IVS. Esses
resultados me fazem lembrar o que me disse a pesquisadora Maria José de Araújo
Lima, do Instituto de Ecologia Humana de Recife, em entrevista que fiz para O
Liberal no início dos anos 1990.
Naquele momento, ela mostrou-se preocupada com os rumos que a Amazônia
estava tomando, ao afirmar que, pelo que indicavam as evidências de então, a
Amazônia ainda poderia se tornar uma região mais pobre do que o Nordeste. A
clarividência da professora Maria José está agora nos resultados da pesquisa de
IPEA, segundo a qual, as cidades amazônicas estão bem mais pobres do que a
maioria dos núcleos nordestinos. É a região que apresentou, nos 10 anos
estudados, o mais baixo índice de evolução da qualidade de vida urbana. Se a
pesquisa for ao imenso interior, pouco haveria a destacar das condições dos
velhos tempos dos seringais, tal como nos conta Ferreira de Castro que,
adolescente, foi mandado para o fundo dos seringais do Acre, logo após chegar
de Portugal a Belém. Seu romance foi publicado em 1930, sob o título A
Selva.
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Gente
sem história ou realidade inventada para
justificar a dominação? |
Nesse mundão de águas e florestas, vale a noção de “povos sem história”
apontados por Wolf (1994, p. 464), para quem, a partir do século XV, a
dispersão dos europeus, através dos oceanos, conjuntou as “redes regionais
pré-existentes” em uma orquestração global e as submeteu a um ritmo de alcance
mundial. Dessa forma, povos com origens e modos de ser diversos “foram
arrastados por essas forças para atividades convergentes, ... levados a
participar na construção de um mundo comum”, pelo encontro de marinheiros
mercantes europeus e soldados de várias nacionalidades, mas também “povos
naturais” da América, África e Ásia.
Afirma o autor que “nesse processo”, as sociedades e culturas de todos
esses povos experimentaram transformações profundas, transformações que
afetaram tanto os povos considerados como portadores de história ‘real’ como
também as populações que os antropólogos chamaram de ‘primitivas’ e que, em
geral, foram estudadas como sobreviventes prístinos de um passado intemporal
(idem, p. 465).
Para Wolf, a história desses povos “primitivos” também está constituída
pelos processos mundiais que a expansão europeia pôs em marcha, não sendo, pois
“antecessores contemporâneos”, nem “povos sem história, nem povos cujas
histórias, usando a expressão de Lévy-Strauss, permanecem congelados” no tempo
(p. 465). No processo de expansão europeia, diz Wolf (idem, p. 469), o controle
da comunicação permite aos administradores estabelecer as categorias por meio
das quais se vai perceber a realidade. E, de modo inverso, esse mesmo processo
carrega em si a faculdade de negar a existência de categorias outras, de
remetê-las ao reino da desordem e do caos, de torná-las social e simbolicamente
invisíveis. Além disso, esse processo de conjuntar povos portadores de história
“real” e aqueles “sem história” esforça-se por manter em seu lugar os
significados assim gerados, isto é, de que os “primitivos” não têm mesmo
história “real”. Esses significados, assim produzidos, constituem “proposições
básicas sobre a natureza da realidade inventada” (idem, p. 469).
Embora subsista uma “realidade inventada” no sentido de petrificar as
noções de submissão “natural” dos povos dominados, há a realidade afinal
visualizada. No interior do Pará, por exemplo, assim como nas chamadas periferias
de suas cidades, de Belém, Santarém, Marabá, Ananindeua, Castanhal, Juruti e
todas as demais 136 sedes municipais, a pobreza e a desordem social são a
regra. Situação que se aprofunda e contra a qual muito pouco se tem feito, a
não ser quando testemunhamos grupos de trabalhadores sem terra e grupos
indígenas dando o exemplo aos “brancos” urbanos ou interioranos, de que é
inaceitável que a Amazônia continue como prostíbulo à disposição de quem chega
para farrear, bem recebidos pelos cafetões locais. E quem já viveu o suficiente
sabe perfeitamente qual o futuro de todo lupanar. Ou ele é arrancado agora ou
será essa a herança para as futuras gerações, como nós outros o herdamos dos
cafetões do passado.
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