A doméstica e o futuro médico: uma amostra do crime e castigo no Brasil
Há uns 15 dias o Brasil inteiro se revoltou com um crime: um bebê recém-nascido foi abandonado numa rua do bairro nobre de Higienópolis, em São
Paulo, capital.
Paulo, capital.
As câmeras de segurança do bairro (são muitas, para proteção de seus moradores) permitiram identificar rapidamente a autora do crime. Não vou dar o nome dela, pois já foi estampado em todos os jornais, revistas e sites de mídia do país.
Apenas resumo que se trata de uma nordestina que vive e trabalha em Sampa como empregada doméstica. Mulher, nordestina, pobre. Possivelmente com pouco estudo.
Apenas resumo que se trata de uma nordestina que vive e trabalha em Sampa como empregada doméstica. Mulher, nordestina, pobre. Possivelmente com pouco estudo.
A autora do abandono justificou-se na delegacia: já tinha dois filhos, mora na casa dos patrões com a mais nova (o mais velho é criado por parentes na Bahia), e com medo de ser demitida escondeu a gravidez inteira, pariu o filho sozinha no banheiro do quarto de empregada e depois deixou a criança na rua. Fez questão de ressaltar que não a abandonou: escondeu-se atrás de uma árvore e ficou esperando alguém encontrar o bebê.
(Parêntesis aqui: ela deixou a criança dentro de uma sacola que pegou na casa dos patrões. A sacola era do Au Pied de Cochon, um restaurante tradicional de Paris)
Por óbvio, a doméstica foi condenada. Não falo do processo criminal, que ainda vai rolar bastante - embora eu não tenha dúvida da condenação dela neste. Foi condenada sem apelação pela opinião pública. Foi xingada das piores imundícies nas redes sociais e no espaço dos comentários dos portais de mídia. Como sempre, não faltou o "na hora de fazer não pensou, né???", essa pérola-frase-feita que sempre mostra a condenação do brasileiro médio sobre o prazer da mulher.
Mas o que eu quero falar aqui é o seguinte: a doméstica, como disse, foi identificada em todos os detalhes. Sabe-se que é natural de Vitória da Conquista (BA), tem 37 anos, seu nome completo foi exposto nos jornais, sua foto e filmagem foram exibidas à exaustão. Condenada publicamente, com sua imagem arruinada.
Corta pro futuro médico: a USP divulgou que um aluno, concluínte do curso de Medicina, havia sido "punido" pela instituição. A punição: um ano de suspensão. O ato irregular dele: estupro. Isso mesmo, es-tu-pro. E não era o primeiro, era o segundo estupro pelo qual a USP o condenava. Ainda falta um: ele é acusado de ter estuprado três colegas de universidade, duas do curso de Medicina e uma do curso de Enfermagem.
Dentro de um ano ele poderá concluir o seu curso. E teremos um médico-estuprador-serial clinicando por aí. Quem sabe na área de ginecologia, para o completo não-desespero de suas futuras pacientes. Digo "não-desespero", pois o nome do futuro médico uspiano não saiu nos jornais - e, lógico, nome e foto provavelmente jamais sairão.
(Outro parêntesis: sinceramente, se a USP não considera três estupros algo grave o suficiente pra expulsar esse aluno, acho melhor fechar a Reitoria e largar a Universidade ao deus-dará. Sem nenhuma forma de gestão ou controle ela estará mais bem administrada do que agora)
É isso aí, pessoal: só uma suspensão e nenhuma execração pública ao estuprador serial da USP. Enquanto isso a doméstica segue sendo linchada, cuspida, agredida, condenada.
A coisa é tão gritante que sem ser mulher eu concluo que é muito escroto ser mulher nesse país! Nessas horas eu fico muito tentado a achar que as mulheres nos países islâmicos radicais tem uma vida menos difícil que as brasileiras. A mulher brasileira, afinal de contas, não pode:
- andar numa rua escura ou deserta, senão está "se expondo" ao risco de ser estuprada. Se for atacada a culpa é dela, por estar numa rua escura e deserta - ainda que essa rua seja o único caminho que ela tem pra sair e chegar de casa...- usar roupa justa ou curta, senão "merece" ser estuprada ou "está pedindo". A mulher só está segura se usar burca, usar a roupa que ela quiser não pode não!
- ser bonita ou explorar a sua sexualidade com independência, senão está sendo vadia, piriguete, vagabunda, ou qualquer adjetivo que os doentes gostem de usar. Homem pode fazer o que quiser, mulher tem que ser uma santa recatada;
- ir sozinha ou com amigas a uma balada ou um bar, senão "está procurando". A mulher só pode sair se tiver um homem no grupo, pra marcar o território e protegê-la dos demais. Senão a matilha se sente inteiramente à vontade pra atacar;
- pular carnaval sozinha ou com as amigas, senão leva passada de mão, apalpada e tem que dar beijo à força. Afinal, se está sozinha no carnaval ela "está querendo", já que mulher "séria" não vai pra carnaval sem um dono.
Em suma, a culpa do estupro, do assédio e da violência é sempre da mulher, pelo simples fato dela ser mulher, e ela só está segura se estiver dentro de casa, escondida.
Se eu fosse mulher no Brasil, só me sentiria minimamente segura se treinasse krav-magá e tivesse porte de arma!
A pobre doméstica, que por imposição de uma vida difícil, dura, de pobreza, se viu obrigada a abandonar seu filho, essa foi condenada em público. As vítimas do futuro médico estuprador-serial estão feridas pro resto da vida.Tanto a doméstica como as estupradas perderam tudo, da dignidade à imagem.
O futuro médico e atual estuprador-serial, esse não! Ao homem toda a benevolência e proteção! Ele conta com toda a proteção da mídia, da USP e da lei pra se manter incólume, concluir sua faculadade e ser um respeitável médico perante a sociedade.
Fecha-se o ciclo do crime e castigo à brasileira, uma situação recorrente quando a vítima é pobre ou mulher: o criminoso segue bem, obrigado, e as vítimas devidamente condenadas e/ou destruídas. E toda a sociedade jura de pé junto (num país que nem a lei básica consegue cumprir) que estaremos bem quando matarmos todos os bandidos em praça pública. Afinal, bandido bom é bandido morto.
Menos o estuprador-serial da USP, que pra todos os efeitos nem existe. Esse nem bandido é: trata-se do "doutor" Fulano de Tal. Aquele que talvez venha a ter no cartão de visita, abaixo do nome, o título "ginecologista".
2 comentários:
De quem é esse texto? Quem é o autor?
Texto do professor e advogado Alan Souza
Copiado do blog FALOPORQUETENHOBOCA
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