Protestos que mudaram a história
“O que eu trouxe dos meus dias de rua foi importante para mim e para a minha construção de vida. Foi a minha chance prática de compreender que a história pode ser construída por nós mesmos e que a defesa dos nossos direitos é antes de tudo uma defesa nossa. Uma conquista e não uma outorga”. Dita assim em meio às manifestações que tomaram conta de todo o país desde junho deste ano e que sobrevivem mesmo que com menor intensidade em muitas capitais brasileiras, a frase do doutor em economia, Gilberto Marques, é atual, apesar da referência debruçada sobre duas décadas passadas. Exatos 21 anos.
Era 1992, o recém universitário carregava nas veias a convicção em mudanças sociais. Na bagagem, a experiência com o movimento estudantil local que sempre atuou ativamente na busca pelos direitos da classe lhe alimentava a esperança de que mais uma vez seria possível vencer. Ele saiu às ruas. Uma. Duas. Perdeu a conta das vezes. Queria o presidente do Brasil à época, Fernando Collor de Mello, fora do posto. Jovem, uniu-se a outros jovens, depois a gente de toda a idade e acabou feliz.
“O movimento estudantil foi importante para sedimentar o fora Collor, localmente, vínhamos de um processo de mobilização muito forte e conseguimos fazer manifestações importantes por aqui. A saída do Collor, não foi - como algumas pessoas tentam mostrar- única e exclusivamente pela corrupção, havia um contexto de crise econômica e social que somado aos escândalos foi a gota d’água para a população”, avalia Gilberto que não nega a satisfação por ter participado ativamente de um dos episódios mais recentes da história do país que culminou com a destituição do presidente Collor de Mello conduzido ao posto através das eleições de 1989.
FORA COLLOR
Primeiro presidente eleito diretamente após a ditadura militar que dominou o Brasil por mais de vinte anos, Collor gerou grande expectativa na população. Intitulado “caçador de marajás” prometia uma política de renovação, mas logo nos primeiros anos de mandato se viu envolto por escândalos e corrupção. O esquema “PC” (sigla de Paulo Cesar Farias tesoureiro de sua campanha) foi decisivo para que a sociedade se organizasse e protestasse contra o governo.
A União Nacional dos Estudantes (UNE), a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (UBES), DCE’s, centros acadêmicos e grêmios livres se uniram e montaram um gigantesco protesto exigindo o impeachment presidencial. Em 1992, com as caras pintadas de verde e amarelo, os estudantes saíam às ruas engrossando a campanha “Fora Collor”. No dia 29 de setembro do mesmo ano, cerca de 100 mil pessoas acompanharam a votação do impeachment de Collor em torno do Congresso. Foram 441 votos favoráveis e 38 contra.
“Lembro da manifestação aqui em Belém feita no dia da votação. Ela foi muito marcante para mim. Houve um clima de comoção generalizado. Vínhamos de manifestações que chegavam a levar 200 mil pessoas às ruas. O Congresso não tinha mesmo outra alternativa. Tenta-se falar que a saída dele [Fernando Collor] foi forçada pela mídia, que havia problemas familiares, mas o fato é que todos os governos que sucederam Collor estiveram envolvidos em casos de corrupção iguais, ou maior, e amplamente repercutidos, mas que, sem mobilização social similar, não evoluiu”, reflete Gilberto, que dessa vez pode comemorar mais rápido.
DIRETAS JÁ
Recém diplomada em jornalismo pela Universidade Federal do Pará (UFPA), dez anos antes, no início dos anos 80, Rosaly Brito, também tomou as ruas. A militante do movimento estudantil e da imprensa alternativa só entendera bem a dinâmica política do país daquela época após a entrada na universidade. “Eu não sabia bem o que significava a ditadura militar que na minha casa sempre foi chamada de revolução de 64. O mundo se descortinou a minha frente após a entrada na universidade. Eu me transformei em uma militante daquelas que dá a vida por isso”, recorda Rosaly que participou ativamente da campanha pelas Diretas Já, em 1984.
O movimento foi o primeiro dos protestos históricos coberto pelo recém-nascido DIÁRIO DO PARÁ. Em comum o mesmo objetivo. O desejo pela redemocratização do país. “No plano econômico a década de 80 é tida como década perdida, mas politicamente foi um período decisivo para o Brasil, um marco importante para que se virasse o jogo contra a ditadura. A campanha “Diretas Já” foi um dos movimentos decisivos, uma das mais belas campanhas de mobilização massiva do país. Quem viveu aquela campanha como eu vivi, a tem na lembrança como uma das coisas mais memoráveis e bonitas que o país pode presenciar. Foi lindíssimo aquele momento”, comenta Rosaly, que também é professora universitária.
CAMPANHA NA RUA
Entre janeiro e abril de 1984, dezenas de comícios foram organizados nas principais cidades brasileiras. A campanha ganhou corpo e exigia a retomada do voto popular para presidência da república. Em São Paulo, em um dos maiores comícios visto no país, cerca de 1,5 milhão de pessoas saíram de casa para protestar. “A campanha teve uma característica importante. Ela girou o país inteiro com núcleos de apoio fazendo seus movimentos locais. No caso de Belém, o grande comício aconteceu na avenida 1º de Dezembro (atual João Paulo II). O palanque foi montado transversalmente, indo de uma margem a outra. Estiveram presentes o então deputado Ulysses Guimarães, presidente do PMDB; Tancredo Neves, Fafá de Belém, Chico Buarque e políticos locais como Jader Barbalho. Todo mundo queria ter a vida democrática do Brasil retomada. Foi memorável, a avenida virou um rio de gente. Foi muito bonito, mobilizou meia cidade”, relembra.
O movimento apoiava a emenda do deputado Dante de Oliveira que previa o restabelecimento do voto popular para eleição do presidente da República. Tudo em meio à ditadura militar. A mobilização indicava um anseio nacional e apontava uma virada de página na história do país, mas foi freada. Colocada em votação no dia 25 de abril de 1984, a emenda acabou não aprovada. “As pessoas saíram à rua, todos de amarelo, a cor símbolo do movimento. Havia uma expectativa enorme e ao final o sentimento foi de derrota. As eleições indiretas que elegeram Tancredo não sanaram o sentimento. Só com a eleição de 1989 é que tudo passou”, recorda Rosaly, com a mesma expressão de indignação.
Volta às ruas tem novo sentido
“O Brasil voltou às ruas”. Essa talvez tenha sido a mais repetida frase nos últimos meses. Em manifestações que começaram no mês de junho em centenas de cidades e ainda se arrastam em algumas delas até hoje - a última na sexta-feira, 30, organizada pelas centrais sindicais em todo o país -, veteranos e debutantes na arte de protestar se encontraram. Não é por R$ 0,20 centavos. Das ruas se ouve gritos contra o preço das passagem de ônibus, contra gastos considerados abusivos com a Copa do Mundo, contra a corrupção, contra o fundamentalismo religioso, contra a proibição do aborto, contra a discriminação aos gays, contra a violência policial e muitas outras causas. O país não via passeatas simultâneas em tantas cidades desde os “caras-pintadas”.
“Eu falo hoje para os meus alunos. Às vezes nós olhamos para traz com saudosismo, mas tem que ser diferente. Acho que a gente tem que olhar o presente mirando o futuro. Ou seja, se a conquista da meia passagem em Belém foi a conquista de uma geração passada, a geração de hoje tem uma tarefa até maior a de manter essa luta. As leis se constroem no papel, mas são efetivadas através de uma ação presente dos movimentos sociais. Ir às ruas, significa lutar por isso”, reflete o professor de Economia, Gilberto Marques, que chegou a participar dos últimos manifestos. “Menos ativamente, mas participei”, destaca.
Para o cientista político Edir Veiga, apesar da característica de retomada das ruas, de novas e grandes mobilizações sociais, cada protesto carrega sua própria peculiaridade. “Há diferenças muito definidas. Na década de 80, na campanha Diretas Já, havia um contexto de necessidade de redemocratização. No Fora Collor, havia uma juventude indignada contra a corrupção. Agora, com os movimentos de junho que se prolongam surge uma nova percepção política e sociológica. Que vai exigir tempo para ser de toda compreendida”, explica.
Segundo Edir, agora, com a presença de manifestantes ainda nas ruas e a indefinição sobre os rumos das manifestações Brasil afora, a única avaliação que se pode fazer é a de que o sistema de representação foi posto em cheque. “Talvez estejamos caminhando para um protagonismo social mais direto, com a política e a democracia precisando ser repensada. Até os movimentos de junho, tínhamos manifestações muito representadas através de partidos. Já notamos uma mudança. E ela há de querer nos apontar algumas coisas. São respostas ainda cedo para serem dadas, mas a reflexão fica”, analisa Edir Veiga.
(Diário do Pará)
segunda-feira, 2 de setembro de 2013
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