Os
organizadores da audiência pública convocada pelo Ministério Público Federal,
em Santarém, no dia 29 de janeiro, para tratar do licenciamento ambiental da
usina hidrelétrica de São Luiz do Tapajós e de suas “irregularidades e
possíveis impactos do projeto”, cometeram um erro de cálculo, afinal previsto
com antecedência: escolheram o auditório da Associação Comercial e Empresarial
para a reunião, com a ideia de que assim motivariam os empresários a estarem
presentes num evento idêntico a outros dos quais os empresários se esquivam
sistematicamente.
O chefe dos caciques munduruku, Arnaldo Kabá: o
problema é
do Brasil e não só da Amazônia (Fotos: MD) |
Um ou
outro apareceu. O que se viu foi uma multidão lotando o auditório cuja
capacidade de acomodação era três vezes menor do que o número de pessoas que
desejavam entrar (clique no texto para ler mais). Pessoas simples,
ribeirinhos, indígenas, estudantes, professores, trabalhadores em geral, cerca
de 600 pessoas apertavam-se num auditório para somente 240 cadeiras.
O excesso
de pretendentes a uma vaga no auditório chegou a causar momentos de tensão que
fizeram a reunião atrasar-se em uma hora e meia, com gritos de protestos e
respostas ríspidas do procurador da República, Luís de Camões Lima Boaventura,
o que acirrou os ânimos num ambiente em que, quem estava dentro, sentado ou em
pé, não podia sair; e quem estava fora, nas escadas ou na rua em frente, sequer
podia sonhar em entrar.
Procurador Luís de Camões, presidiu a audiência à
qual não
apareceu o governo federal |
Passado o
longo momento de maior sufoco, a reunião começou. Após as palavras de ordem,
gritos e demais formas de manifestação de um numeroso grupo que pedia para que
a audiência fosse transferida para o auditório da Universidade Federal do Oeste
do Pará, pareceu-me que, em meio àquelas manifestações, faltou um refrão
unificador dos protestos contra essa nova e avassaladora forma de invasão da
região no século 21: Amazônia não quer mais ser colônia!
Um refrão
debaixo do qual possam ser acolhidos os gritos contra a hidrelétrica de São
Luiz e as outras dezenas de usinas planejadas; contra a penetração devastadora
do latifúndio a que chamam de agronegócio que expulsa famílias de agricultores
tal como foram mandados para o inferno os indígenas do século 16, no processo
de ocupação mercantilista-capitalista da Amazônia. Afinal, todos esses projetos
que, se materializados, deixarão o Vale do Rio Tapajós como terra e água
arrasadas, como se ali já estivesse em andamento um massacre nuclear, cujas
primeiras bombas já foram detonadas.
Protestos e excesso de gente atrasaram a reunião
|
Um refrão
unificador se justifica porque:
1. A
hidrelétrica de São Luiz - assim como todas as demais previstas para vários
sítios da região - não produzirá energia para as populações da Amazônia, disso
todos sabemos;
2. Não
produzirá energia para as populações locais porque o secular projeto, o
verdadeiro projetão para a região é mantê-la na condição de colônia do Brasil e
de outras potências externas;
3. Da
mesma forma como o agronegócio produz alimento não para abastecer as nossas
feiras, mas para torna-lo commodity para abastecer as necessidades dos países
ricos, ficando a Amazônia na condição de quintal do grande capital;
Em alguns momentos a tensão dominou o ambiente
|
4. A
rodovia BR-163 entra agora na lista dos investimentos para dar-lhe melhores
condições de tráfego não para beneficiar a região, mas para servir de passagem
aos milhares de carretas com soja e milho para a exportação, deixando nada para
as populações locais, a não ser os buracos no asfalto, como há alguns anos já
se verifica nas ruas de Santarém;
5. Todos
esses projetos produtores de matérias-primas sequer pagam impostos aos governos
locais, centralizando a arrecadação do ICMS em Brasília; as mineradoras deixam,
ou melhor, deixariam um tal royalty que mais serve de barganha entre empresas e
políticos, ou utilizam recursos contábeis como meio de reduzir os repasses às
prefeituras; ou como ocorre em Oriximiná, maqueiam os repasses sob a forma de
pintura asfáltica das ruas da cidade, embora sem esgoto e outros benefícios,
apenas para criar a impressão de que algo de efetivamente positivo fica para
uma população residente numa região explorada há 40 anos;
6. A
Amazônia tem que deixar de ser uma colônia, caso contrário, os seus rios – como
já ocorre – se tornarão esgotos de um processo de mineração, o garimpo
industrial, que já compromete mais de 600 quilômetros, entre outros, do Rio
Tapajós e inúmeros afluentes, cujo lamaçal contaminado e contaminante por
mercúrio, cianeto, graxos e detergentes já se encontra a cerca de 50
quilômetros de sua foz, diante da cidade de Santarém;
Relação
conhecida
A relação
é conhecida, nada disto é revelação de algo novo. No entanto, o processo de
destruição da natureza e da vida humana e animal prossegue sob o incentivo dos
governos em todos os seus níveis. E prossegue a despeito de todas as provas da
devastação física e humana em andamento, debaixo do silêncio e mesmo do aplauso
das elites locais, solidárias aos grupos externos que não têm nenhum
compromisso nem com a Amazônia nem com o Brasil, nem com a vida de suas
populações.
O que há
de novo é que os povos diretamente afetados por tamanha agressão começam a
organizar-se, na tentativa tanto de reconstruir a sua história, assim como a
construir o seu presente de modo bem diferente do que ocorre há décadas e
séculos.
A
Amazônia cansou de ser colônia do Brasil e de outras potências externas. Sim,
quer ser Brasil, mas o Brasil parece que não quer a Amazônia, a não naquilo que
esta região e seu povo podem oferecer-lhe gratuitamente, em troca de rios
transformados em esgotos, florestas postas abaixo, fauna desaparecendo, peixes
sumindo e/ou sendo contaminados por produtos químicos que têm o potencial de
literalmente fazer adoecer uma multidão de consumidores de pescado.
Assim, a
pauta da audiência pública do dia 29 passado extrapolou a usina de São Luiz.
Gritaram contra as barragens, contra a situação dos indígenas e ribeirinhos do
Maró, contra as barcaças de soja que descem de Miritituba e que já começaram a
assorear o leito do Tapajós, contra Belo Monte, contra a garimpagem industrial,
cujo perigo parece ainda não ter sensibilizado muitos dos que se manifestam
contra as barragens.
Convite
No início
da reunião, o chefe dos caciques Munduruku, Arnaldo Kabá, convidou a sociedade
inteira a unir-se a eles, já que o desastre em andamento não afetará apenas os
grupos indígenas e demais populações mais próximas dos projetos, mas afetará a
economia, incluindo o nascente turismo em todo o Oeste do Pará, e colocará em
risco a saúde pública na vasta região do Vale do Tapajós.
Na
ocasião, foi anunciado que os escritórios da Greenpeace nos Estados Unidos,
Alemanha e Inglaterra preparam uma campanha contra as hidrelétricas projetadas
para o Tapajós. O apoio externo será bem-vindo, mas as decisões e a
responsabilidade da luta têm que ser dos amazônidas, caso contrário pode-se
repetir a velha dependência externa, justamente o que agora os povos da Amazônia
querem evitar, em nome de seu presente e de seu futuro.
No salão
da Associação Comercial, como era de esperar, não estavam representantes do
Ibama, nem de qualquer outro órgão federal convidado. Alguns secretários
municipais e, como se informou, o prefeito de Santarém, Alexandre Wanghom,
esteve ausente “porque não pode entrar no auditório”.
Com todos
os problemas verificados, o cacique Kabá e o procurador Camões têm razão.
Embora não tenham falado dessa forma, o que disseram e o que falaram os
convidados, entre cientistas e militantes, é que a Amazônia não quer mais ser
colônia.
Relatório
do MPF
01/02/2016
Hidrelétricas
na bacia do rio Tapajós
Pesquisadores,
líderes indígenas, beiradeiros, procuradores da República e movimentos sociais
debateram por mais de seis horas os problemas dos projetos de barragens na
região. Pelo governo federal, foram convidados, mas não participaram
representantes do Ministério de Minas e Energia, Ibama, Funai, Eletrobrás e
ICMBio.
Os
projetos do governo para barragens na bacia do Tapajós mobilizaram a cidade de
Santarém, no Oeste do Pará, durante mais de seis horas de audiência pública
realizada nesta sexta-feira, 29 de janeiro, na sede da Associação Comercial da
cidade. Promovida pelo Ministério Público Federal (MPF), a audiência atraiu
mais de 500 pessoas para ouvir pesquisadores, lideranças indígenas,
procuradores da República e lideranças ribeirinhas que trataram dos inúmeros
riscos e falhas dos projetos, que impactam com gravidade um dos corredores
ecológicos mais importantes da Amazônia e também uma das áreas de ocupação
humana mais antiga, milenar, na região.
Era tanta
gente que logo no começo um grupo que não conseguiu entrar no auditório
provocou um pequeno tumulto na tentativa de cancelar ou mudar a audiência de
local. Mesmo assim, com atraso de cerca de uma hora, os debates transcorreram
normalmente. Foram convidados representantes de vários órgãos do governo
envolvidos nos projetos de barragens, mas ninguém compareceu. “De nove empresas
interessadas na construção de São Luiz do Tapajós, oito são empreiteiras
investigadas na operação Lava Jato”, disse o procurador Camões Boaventura ao
iniciar sua explanação sobre as irregularidades até agora encontradas pelo MPF
nos projetos de barragens no Tapajós.
Ao todo,
são 43 barragens de vários tamanhos, projetadas pelo governo para o Tapajós e
seus três afluentes, Teles Pires, Juruena e Jamanxim. Algumas, no Teles Pires e
no Juruena, já estão em construção. No Tapajós, o governo anunciou que vai
licenciar ainda em 2016 a usina de São Luiz do Tapajós, que alaga uma terra
indígena Munduruku e algumas comunidades ribeirinhas. O projeto já enfrenta
pelo menos quatro menos processos judiciais. Um deles, por não ter respeitado o
direito de consulta prévia, previsto na Convenção 169 da Organização
Internacional do Trabalho (OIT), já tem decisão do Superior Tribunal de Justiça
que obriga o governo a fazer a consulta. Mesmo tendo anunciado o licenciamento
para os próximos meses, o governo não tomou nenhuma providência para consultar
os povos afetados.
“Queremos
ser consultados”, disse Ageu Pereira, liderança da comunidade ribeirinha
Montanha e Mangabal. No Tapajós, os ribeirinhos se chamam beiradeiros. Como o
nome indica, a beira do rio é essencial para seu modo de vida. Se as usinas forem
construídas, eles deixarão de ser beiradeiros. A pesquisadora Camila
Jericó-Daminello estimou em mais de R$ 1 bilhão as perdas das comunidades
ribeirinhas só em produtos florestais e pesqueiros dos quais hoje se sustentam,
em caso de construção da usina.
Outra
comunidade beiradeira que vive há séculos no Tapajós e deve sumir do mapa com
as barragens é Pimental. “Nós já somos impactados desde agora, pelo
desrespeito. Os pesquisadores de barragem chegam na nossa terra e querem fazer
estudos à força. Se não queremos, eles chamam a Força Nacional para nos
obrigar. Vocês não imaginam como é doído”, disse José Odair Cak, liderança do
Pimental.
Além do
uso de força contra a população afetada já no período de estudos de impacto e
da absoluta ausência da consulta prévia obrigatória, a população da região
questiona a necessidade das usinas, já que entendem que a energia gerada não
vai beneficiar a população amazônica. Um dos debatedores, o professor Célio
Bermann, da Universidade de São Paulo (USP), foi categórico: “eu afirmo agora
que o Brasil não precisa de usinas no Tapajós”, sendo longamente aplaudido.
“Vivemos
numa civilização elétrica. É verdade que precisamos de energia elétrica. Mas a
hidroeletricidade não é a única opção. O nosso país tem as maiores tarifas de
energia elétrica do mundo, com 70% da geração vindo de hidrelétricas. Então é
preciso se pensar seriamente se essa opção é mesmo correta”, disse Bermann.
“Cada usina é apresentada pelo governo como uma solução para a ameaça de
apagão. Não é verdade. Até porque o apagão é muito mais causado pela falta de
manutenção da rede elétrica brasileira do que pela falta de usinas. Existem
alternativas e elas não incluem grandes usinas na Amazônia. Só que o Ministério
Público e os pesquisadores não são considerados pelo governo no planejamento
elétrico. Isso precisa mudar”.
Ricardo
Baitelo, do Greenpeace, também reivindicou durante a audiência que a sociedade
possa participar do planejamento elétrico e apresentou modelagens em que o
Brasil aumenta significativamente a energia instalada sem a construção de
nenhuma barragem na Amazônia, com diversificação da matriz energética e
investimento em eficiência. “Com isso, é sim possível ao Brasil estocar vento”,
disse Baitelo.
Mesmo com
tantas alternativas apresentadas, o pesquisador Phillip Fearnside, um dos
maiores especialistas em barragens tropicais, fez um alerta sombrio de que os
planos verdadeiros do governo preveem um total de 69 grandes barragens na
Amazônia, do porte de São Luiz do Tapajós ou da usina Teles Pires, alagando um
total de 10 milhões de hectares.
Os
maiores interessados, os povos que vivem nos rios e nas florestas da região,
parecem ter entendimento profundo das consequências desse modelo. O
cacique-geral do povo Munduruku explicou com economia de palavras. “Não só
Munduruku vai sofrer, vai sofrer o mundo todo. Nós estamos defendendo o povo
brasileiro”, disse, sobre a resistência contra as usinas. Pesquisadores que
falaram durante a audiência concordaram com o cacique: danos na região do
Tapajós podem prejudicar não só a região amazônica, como o Brasil inteiro e ter
impactos mundiais, já que a Amazônia funciona como um regulador mundial do
clima, assegurando a umidade em São Paulo, por exemplo. Sem a floresta,
pesquisas apontam, a maior cidade brasileira seria um deserto.
E a
floresta está severamente ameaçada pelos projetos. Segundo Ane Alencar, do
Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), que usou as taxas de
desmatamento provocadas por Belo Monte para projetar o desmatamento que as
usinas causarão no Tapajós, aponta potencial de perda de mais de 3,2 milhões de
hectares de florestas na área.
Metilmercúrio
– Uma das apresentações que teve mais impacto sobre o público foi do médico
Erik Jennings, que apontou o risco de uma catástrofe na saúde humana na região,
por causa do potencial das usinas se transformarem em verdadeiras fábricas de
metilmercúrio, que é extremamente tóxico e causa danos ao sistema nervoso
central, além de malformações fetais. “O solo amazônico é rico em mercúrio, na
forma inerte, mas com a formação de lagos de usinas, esse mercúrio assume a
forma tóxica e passa a ser absorvido pelos peixes, principal fonte de
alimentação da população em toda a região”.
Jennings
mencionou uma pesquisa feita com mulheres de cabelos longos na região da
instalação da usina de Balbina, no Amazonas. A partir do comprimento dos
cabelos e medindo a concentração de mercúrio ao longo dos fios, os
pesquisadores conseguiram provar que quando a usina foi instalada houve uma
explosão na concentração de mercúrio nos organismos das mulheres.
“Por que
não se trata desse tema nos estudos? Temos uma falsa sensação de não
envenenamento na Amazônia. Em Minamata (região no Japão onde houve graves casos
de contaminação por mercúrio) foram precisos 24 anos para se reconhecer a
contaminação, porque os efeitos do mercúrio têm um ciclo longo para se
manifestar. Não podemos esperar que isso ocorra na Amazônia”, disse o médico.
Os estudos da usina chegaram a descartar o risco de contaminação por mercúrio,
mas fizeram exames na água e não nos peixes, que é por onde o mercúrio é
absorvido pelas pessoas.
Patrimônio
arqueológico – A ocupação humana no Tapajós, milenar, foi destacada pelos
professores da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa) Bruna Rocha e
Raoni Valle. Bruna mostrou como é antigo o discurso governamental de que a
Amazônia é uma floresta virgem. Mostrou exemplos da ditadura militar e uma fala
bem mais recente, do presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE),
Maurício Tolmasquim, que disse acreditar que as usinas do Tapajós não teriam
impactos porque não moram pessoas na região.
“A
arqueologia mostra que a região do Tapajós é povoada milenarmente. Sítios
arqueológicos mostram ocupação humana datada dos séculos 800 a 900 d.C., em
áreas que serão destruídas pelas usinas”, disse Bruna Rocha. Raoni Valle, que
vem desenvolvendo uma pesquisa junto com os índios Munduruku, reivindicou a
importância de se proteger os locais sagrados como ação fundamental para
assegurar a sobrevivência física e cultural dos povos indígenas, de acordo com
resolução da Organização das Nações Unidas (ONU).
“A
expropriação do território dessas populações é a expropriação da memória delas,
porque as memórias estão nos locais sagrados, nas paisagens do Tapajós.
Destruir essa região é destruir a identidade dessas pessoas que estão nele
enraizadas há tantos séculos”, disse Bruna Rocha.
Belo
Monte – A usina hidrelétrica de Belo Monte, quase concluída no rio Xingu, a
cerca de mil quilômetros de Santarém, também foi assunto da audiência pública.
A procuradora da República Thais Santi, que atua no MPF em Altamira, fez uma
fala de alerta sobre a situação que vivem os moradores do Xingu. “A obra de
Belo Monte foi aceita com promessa e o compromisso do Estado com a região.
Depois das promessas, o Estado foi embora e quem assume a concessão é uma
empresa que além de não ter conhecimento da região deliberadamente descumpriu
suas obrigações. Condicionante é obrigação. É requisito de viabilidade da obra.
Não se permitam acreditar em falsas promessas”, pediu.
Marcelo
Salazar, do Instituto Socioambiental (ISA), enumerou inúmeras condicionantes
descumpridas de Belo Monte. “Eles fizeram a maior obra de engenharia do mundo e
até agora não foram capazes de colocar um único hospital para funcionar em Altamira.
É puro descaso”, afirmou. “No Xingu, a Funai está quase fechando as portas.
Nunca houve escritório do Ibama na região de Belo Monte. O Estado abandonou
aquela população”, disse Thais Santi.
Relatório:
Ministério Público Federal no Pará, publicado originalmente no portal
EcoDebate.
Postado
há Yesterday por Manuel Dutra
A região amazônica
agoniza e pede socorro.
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